quarta-feira, 21 de maio de 2025

Você adotaria um filho de PVC? Ou se casaria com um robô?



Você adotaria um filho de PVC? Ou se casaria com um robô?

Subtítulo: O Fenômeno Reborn: Entre o Lúdico, o Psicológico e o Mercado 

(Reflexão: Manoel Antonio)


Nas últimas décadas, um brinquedo aparentemente inofensivo tem provocado debates acalorados nas redes sociais, nos consultórios e até nos parlamentos: o bebê Reborn. Inicialmente criado como uma evolução estética das tradicionais bonecas de criança, o Reborn se transformou em um simulacro quase perfeito de um bebê real — com peso, textura, feições e até expressões faciais hiper-realistas. Mas por que esse boneco se tornou alvo de tanta polêmica?


Desde os estudos de Jean Piaget e Lev Vygotsky, sabemos que o brinquedo é um instrumento pedagógico fundamental na infância. Bonecas e bonecos ajudam a criança a entender papéis sociais, a praticar o cuidado, a encenar situações da vida adulta de maneira segura e simbólica. A maternidade, nesse contexto, é apresentada à criança por meio de um teatro lúdico: o bebê chora, “precisa” de comida, banho, carinho. Tudo isso é ficção consciente, que permite à criança desenvolver empatia, responsabilidade e habilidades sociais.


Ocorre que o mercado percebeu uma oportunidade de ampliar esse jogo simbólico. Bonecos que antes representavam bebês começaram a ganhar versões adolescentes, com desejos cada vez mais sofisticados: roupas de marca, casas luxuosas, carros, viagens. Nesse novo teatro, o boneco deixa de ser objeto de cuidado e passa a ser espelho dos próprios desejos e vaidades do consumidor. Estamos diante da chamada “gourmetização do lúdico” — uma transformação do brinquedo em plataforma para a projeção de sonhos e identidades.


Com os Reborns, no entanto, o salto foi mais radical. A busca pela perfeição estética levou à criação de bonecos que, ao toque e à visão, confundem-se com bebês reais. Isso produziu efeitos inesperados. Estudos em neurociência indicam que, ao segurar um bebê Reborn, certas regiões do cérebro humano podem ser ativadas da mesma forma que ao segurar um recém-nascido de carne e osso. Regiões ligadas ao afeto, ao apego e à empatia entram em atividade — especialmente em indivíduos com forte instinto maternal ou que estejam em luto, carência emocional ou vivenciando traumas relacionados à maternidade.


É por isso que os Reborns ultrapassaram o público infantil e ganharam espaço entre adultos. Algumas mulheres, por exemplo, adotam seus bonecos como filhos de verdade: dão nomes, compram roupas, contratam fotógrafos, passeiam com carrinhos de bebê e, mais recentemente, tentam agendar consultas em clínicas pediátricas para seus "filhos" de PVC. A fronteira entre o simbólico e o real começa a ruir.


E esse fenômeno não está restrito à maternidade simbólica. Um paralelo direto pode ser traçado com o universo das bonecas infláveis e robôs sexuais, que há milênios acompanham a história humana como extensões do desejo e do afeto. O que começou como objetos rudimentares de prazer evoluiu, com os avanços tecnológicos, para companheiros artificiais hiper-realistas, dotados de pele de silicone, movimento, fala e até simulações de resposta emocional. Empresas como a RealDoll (EUA) e a Lumidolls (Espanha e Japão) desenvolvem parceiros robóticos com inteligência artificial integrada, e há registros de pessoas que não apenas mantêm relações sexuais com essas figuras, mas também se casaram com elas e reivindicam reconhecimento emocional e social dessas uniões.


Em 2018, um homem no Japão realizou uma cerimônia formal de casamento com um holograma, e em diversos países há comunidades de pessoas que vivem relacionamentos afetivos com robôs ou bonecas de silicone. O mais intrigante é que essa vertente do “PVC afetivo-sexual” não recebe o mesmo nível de crítica ou resistência social que o fenômeno Reborn. Isso ocorre, em parte, porque o desejo sexual, mesmo quando simbolicamente projetado, atende interesses privados e consensuais — e porque o objeto sexual não compete com estruturas institucionais como a maternidade, o sistema de saúde infantil ou os direitos da infância.


Nesse ponto, o bebê Reborn representa uma ruptura simbólica mais profunda: ao reivindicar os direitos de um ser humano real (como atendimento pediátrico), ele desafia fronteiras sociais, legais e culturais. Não é apenas afeto simbólico, é uma tentativa de inserir o simulacro no convívio institucionalizado — o que incomoda mais do que a substituição sexual consensual.


Surge então o dilema: tratar a prática como disfunção psicológica ou acolhê-la como expressão legítima de afeto simbólico? Estaríamos diante de um surto coletivo de negação da realidade ou da criação legítima de um universo alternativo, funcional e emocionalmente válido?


Filósofos como Jean Baudrillard chamariam isso de hiper-realidade: quando a cópia da realidade se torna mais significativa para o indivíduo do que a realidade original. O bebê Reborn, assim como o robô sexual, não é apenas um objeto. É um substituto idealizado — controlável, previsível, eterno.


Essa nova realidade tem implicações sociais, econômicas e até jurídicas. Há países onde lojas especializadas oferecem “consultas médicas simbólicas” para Reborns, vendem roupas sob medida e até certificados de nascimento. No Brasil, há casos de tentativas de registro civil para bonecos. Já há projetos de lei e iniciativas legislativas debatendo o papel social desse tipo de relação simbólica.


De um lado, poderíamos criar espaços simbólicos: clínicas, creches, cursos de maternagem para Reborns, profissionais treinados para atender essa nova demanda emocional. Seria uma forma de acolher quem encontra nesses bonecos uma válvula de escape para dores emocionais, traumas ou carências. Por outro, é preciso cautela. Quando o simulacro ocupa o lugar do real, corremos o risco de negligenciar vínculos humanos, responsabilidades sociais e, em alguns casos, agravar quadros de dissociação e isolamento.


Em conclusão, tanto os bebês Reborn quanto os robôs sexuais são manifestações de uma sociedade em transição. Uma era em que a carência emocional, o medo da imperfeição e o desejo de controle sobre o afeto e o prazer criam substitutos da realidade. O brinquedo, o boneco, o robô: todos passam a ser “alguém”. O humano, paradoxalmente, se torna o ausente. Cabe à sociedade decidir se vai reagir com rejeição, regulação ou adaptação diante dessa nova dramaturgia do afeto