sexta-feira, 21 de novembro de 2025

O PARADOXO DA CELERIDADE DIGITAL NOS TRIBUNAIS.

 


O PARADOXO DA CELERIDADE DIGITAL NOS TRIBUNAIS.


Nos Flintstones, Fred dirige um carro que parece moderno, com teto, volante e até um certo charme pré-histórico — mas quem realmente move o veículo são os pés do próprio motorista, esforçando-se para fazer a máquina andar. No extremo oposto, os Jetsons simbolizam o futuro: carros que voam, casas inteligentes, robôs que fazem o trabalho pesado.


A Justiça digital brasileira hoje vive exatamente entre esses dois mundos: a carroceria futurista dos Jetsons — sistemas eletrônicos, inteligência artificial, painéis sofisticados —, apoiada no modo de propulsão dos Flintstones, em que o avanço real depende da força humana dos servidores, que continuam empurrando manualmente um acervo digital pesado, classificando processos um a um, trilhando filas e identificando pedidos sem qualquer ajuda inteligente dos sistemas.

É desse contraste que nasce o paradoxo: a Justiça parece viver nos Jetsons, mas funciona como os Flintstones — tecnológica na aparência, pré-histórica no esforço humano que continua sustentando toda a engrenagem. 

1. “Espólio digital” de sistemas antigos

Cada troca de sistema (DCP, PJe, EPROC, SAJ etc.) deixa acervos presos em plataformas antigas.

A migração é parcial, difícil ou cara → o servidor precisa consultar vários sistemas diferentes.

Isso quebra a promessa de celeridade e aumenta o retrabalho.

2. Digitalizou, mas não aliviou o trabalho

O processo virou digital, mas o modo de trabalhar continua pesado.

O número de cliques e telas para movimentar um processo não diminuiu significativamente.

As rotinas em lote e modelos só se aplicam a uma parcela pequena dos casos, porque a maioria das decisões não segue padrão rígido.

3. Falta de filtros e triagem interna inteligente nas filas

As filas internas mostram só a “localização” (minuta, triagem, aguardando prazo…), mas não o conteúdo do pedido.

Os sistemas não fazem triagem interna dentro da mesma fila/localizador, isto é:

  • não separam automaticamente processos com mandado de pagamento,
  • com acordos,
  • com desistências,
  • ou outros pedidos específicos.

Essa análise pesada (ler petição por petição e classificar mentalmente) é carregada integralmente pelo humano.

Resultado: o servidor abre processo por processo para descobrir o que há ali, mesmo em situações que seriam facilmente filtráveis por IA.

4. IA focada no texto, não no fluxo (o paradoxo)

A IA implementada pelo CNJ e pelos tribunais vem sendo usada principalmente para ajudar a escrever:

minutas de despachos, decisões e sentenças, simplificar linguagem etc.

Ou seja, a IA atua na ponta final (texto pronto), mas não atua na triagem interna das filas, nem organiza o acervo por tipo de providência.

Paradoxo:

A IA consegue montar uma minuta de sentença em segundos;

mas quem decide qual processo vai para a sentença, qual tem acordo, qual é só pagamento ainda é o servidor, na base do “abrir um por um”.

A tecnologia “brilha” na vitrine (minutas com IA), mas o trabalho pesado de classificação e priorização continua 100% humano.


5. Muito investimento, pouco ganho prático na base

Há milhões investidos em TI e IA, com discurso forte de modernização.

Para quem está no cartório, o ganho concreto muitas vezes foi:

  • liberar espaço físico (saíram as estantes e caixas de papel);
  • mas a sobrecarga mental e operacional permanece, só que agora em frente à tela.


6. Falta de foco na gestão do trabalho do servidor

7. A IA ainda não é usada, em larga escala, para:

  • fazer triagem interna automática das filas,
  • classificar pedidos por tipo de providência,
  • criar filas inteligentes (pagamentos, acordos, desistências, etc.),
  • reduzir cliques, reaberturas de processo e tempo de triagem,
  • medir e reduzir o esforço cartorário.
  • O sistema é “moderno” por fora, mas o jeito de trabalhar continua analógico por dentro: o servidor é quem carrega nas costas a organização do acervo digital.