Nos Flintstones, Fred dirige um carro que parece moderno, com teto, volante e até um certo charme pré-histórico — mas quem realmente move o veículo são os pés do próprio motorista, esforçando-se para fazer a máquina andar. No extremo oposto, os Jetsons simbolizam o futuro: carros que voam, casas inteligentes, robôs que fazem o trabalho pesado.
A Justiça digital brasileira hoje vive exatamente entre esses dois mundos: a carroceria futurista dos Jetsons — sistemas eletrônicos, inteligência artificial, painéis sofisticados —, apoiada no modo de propulsão dos Flintstones, em que o avanço real depende da força humana dos servidores, que continuam empurrando manualmente um acervo digital pesado, classificando processos um a um, trilhando filas e identificando pedidos sem qualquer ajuda inteligente dos sistemas.
É desse contraste que nasce o paradoxo: a Justiça parece viver nos Jetsons, mas funciona como os Flintstones — tecnológica na aparência, pré-histórica no esforço humano que continua sustentando toda a engrenagem.
1. “Espólio digital” de sistemas antigos
Cada troca de sistema (DCP, PJe, EPROC, SAJ etc.) deixa acervos presos em plataformas antigas.
A migração é parcial, difícil ou cara → o servidor precisa consultar vários sistemas diferentes.
Isso quebra a promessa de celeridade e aumenta o retrabalho.
2. Digitalizou, mas não aliviou o trabalho
O processo virou digital, mas o modo de trabalhar continua pesado.
O número de cliques e telas para movimentar um processo não diminuiu significativamente.
As rotinas em lote e modelos só se aplicam a uma parcela pequena dos casos, porque a maioria das decisões não segue padrão rígido.
3. Falta de filtros e triagem interna inteligente nas filas
As filas internas mostram só a “localização” (minuta, triagem, aguardando prazo…), mas não o conteúdo do pedido.
Os sistemas não fazem triagem interna dentro da mesma fila/localizador, isto é:
- não separam automaticamente processos com mandado de pagamento,
- com acordos,
- com desistências,
- ou outros pedidos específicos.
Essa análise pesada (ler petição por petição e classificar mentalmente) é carregada integralmente pelo humano.
Resultado: o servidor abre processo por processo para descobrir o que há ali, mesmo em situações que seriam facilmente filtráveis por IA.
4. IA focada no texto, não no fluxo (o paradoxo)
A IA implementada pelo CNJ e pelos tribunais vem sendo usada principalmente para ajudar a escrever:
minutas de despachos, decisões e sentenças, simplificar linguagem etc.
Ou seja, a IA atua na ponta final (texto pronto), mas não atua na triagem interna das filas, nem organiza o acervo por tipo de providência.
Paradoxo:
A IA consegue montar uma minuta de sentença em segundos;
mas quem decide qual processo vai para a sentença, qual tem acordo, qual é só pagamento ainda é o servidor, na base do “abrir um por um”.
A tecnologia “brilha” na vitrine (minutas com IA), mas o trabalho pesado de classificação e priorização continua 100% humano.
5. Muito investimento, pouco ganho prático na base
Há milhões investidos em TI e IA, com discurso forte de modernização.
Para quem está no cartório, o ganho concreto muitas vezes foi:
- liberar espaço físico (saíram as estantes e caixas de papel);
- mas a sobrecarga mental e operacional permanece, só que agora em frente à tela.
6. Falta de foco na gestão do trabalho do servidor
7. A IA ainda não é usada, em larga escala, para:
- fazer triagem interna automática das filas,
- classificar pedidos por tipo de providência,
- criar filas inteligentes (pagamentos, acordos, desistências, etc.),
- reduzir cliques, reaberturas de processo e tempo de triagem,
- medir e reduzir o esforço cartorário.
- O sistema é “moderno” por fora, mas o jeito de trabalhar continua analógico por dentro: o servidor é quem carrega nas costas a organização do acervo digital.